30 novembro, 2010

Pot-Pourri


A mecânica quântica. Que repositório, que vazadouro de aspirações humanas, a fronteira onde o rigor matemático derrotava o senso comum, e a razão e a fantasia se fundiam irracionalmente. Aí, os que tinham tendências místicas podiam encontrar tudo o que precisavam e invocar a ciência como prova.





Decidi, por uma vez, alterar o formato deste espaço (caso possa assim designar-se uma quantidade de magabaites de cargas, atamancada em volátil e potencialmente efémero condomínio de silício, num ignoto e deslocalizado núcleo de processadores, distribuído por uma interminável e impalpável rede virtual) !

Porque quero escapar a circularidades formais e de reflexão, espreitar desvios, estilhaçar rotinas, quero pôr-me em bicos dos pés e não ser visto apenas, definitiva e letalmente, como aquilo em que possam acreditar que sou...

Porque o homem é a antítese de um elegante e selecto Neil Hannon (que no sábado, em Guimarães, deu um concerto envolvente, intimista e de grande classe, terminando a declarar, antes do ultimo encore, que queria ir para a cama comigo!), faz o que quer da voz e é de uma versatilidade ecléctica espantosa (sem de alguma forma menosprezar o trio acompanhante), permito-me abrir em prol dos vossos embotados sentidos, como já não fazia desde primevas eras, uma estimulante janela...



... (no seu mais recente “Mondo Cane”, sabota impertinente e subversivo, a dolente “canção-romântica-tipo” italiana)...


Porque me assolapa uma esverdeada inveja por não ser o bafejado autor de um livro brilhante e de uma lucidez desarmante sobre os paradigmas da vida moderna e que me preenche integralmente as medidas, em particular aquele a partir do qual transcrevo os blocos introdutório e final deste panfleto,...

Porque esta noite será solene e de celebração; sob os auspícios de Santo Elói, uma genuína tertúlia de hedonisto-epicuristas renovará os elos de uma antiga e emotiva cadeia de amizades. Aos 30 de Novembro, hoje, em Évora.




O poético, o científico, o erótico – porque havia a imaginação de se preocupar com que senhor servia?

Solar - Ian McEwan


23 novembro, 2010

A Ordem das Coisas (V) - Expoentes de Lyapunov


Mantinham desde a juventude uma amizade cimentada pela solidariedade de quem, vindo das mais longínquas e remotas províncias, tem de vingar entre a competitiva e implacável intelligentsia da capital. Instintivamente vivaços, era transparente para eles que um sem-fim de oportunidades estava disponível, mesmo à mão de semear, para quem se plantasse no momento certo no socalco mais adequado e exposto ao sol e não se deixasse afectar por pruridos sobre os mais expeditos e eficazes métodos de escalar as agrestes falésias da vida.
Foi pois naturalmente que aderiram à sinuosa carreira política, terreno fecundo para as sementes das suas arrojadas ambições e viveiro de oportunidades inusitadas, o que permitiu o início de uma gestão ao mais ínfimo pormenor dos restritos circuitos de influência, de uma cadeia de negociação e cobrança de favores e da implantação de resistentes e flexiveis teias de dependência e subserviência.
Por essa altura, ambos consideraram conveniente a obtenção de um diploma (ninguém no país levava sequer a sério quem não fosse engenheiro ou doutor) e o respectivo sucesso académico demonstrou igualmente o nível surpreendente das suas prestações e força de vontade.
Entretanto, definidas as respectivas zonas de conforto, as suas opções conduziram-nos por percursos diferentes, mantendo no entanto, sempre a estreita colaboração que mútuamente os favorecia. E enquanto um deles preferia declaradamente os ambientes sorrateiros, de palmadinha nas costas e pequenas tramóias, o segundo, sedutor por natureza e aspirando à incensação, abalançava-se aos altos vôos da política com p grande, gerando nos círculos mundanos uma invulgar e estranha empatia.

Apanhado em diversas ocasiões na esteira de operações mais obscuras, sempre algum compadre lhe lançou a mão, aparecendo meses depois, numa fase inicial, presidindo a algum instituto tão conveniente quanto inútilmente criado, alguns anos mais tarde, como administrador de uma qualquer fundação uns quantos níveis acima, enquanto a acidez do tempo dissolvia as pilhas de papel que constavam dos seus processos. Estava sempre a par de tudo o que havia para saber.

O amigo, por seu lado, atingia cargos governamentais de estatuto progressivamente crescente, batia-se por causas polémicas e mediáticas e, muito pragmáticamente, foi tido em consideração pelos seus camaradas de partido quando tiveram que promover um empolgante novo líder. Daí à chefia do governo foi apenas um passo. A sua assertividade optimista serviu de exemplo e estimulou os cidadãos, a quem, enfim, auguravam um futuro promissor, optando estes espontâneamente por disfrutar de imediato o seu merecido bem-estar, investindo com igual entusiasmo tanto no essencial como no fútil. O país explodia de desenvolvimento. Era o tempo das novas tecnologias e oportunidades, das renováveis e positivas energias.

Um dia, a rede montada foi maior do que desleixadamente pudera prever e o seu nome voltou às manchetes, que não se coíbiam de relembrar todo o seu percurso esquivo. A posição que ocupava em destacada instituição ficou comprometida e foi obrigado a afastar-se. Tentou dissolver-se discretamente nas fátuas névoas dos inúmeros outros escândalos sonantes da praça, mas logo outra notícia o atirava de novo para a ribalta; o caso, desta vez, era sério. No entanto, nem tempo de nojo chegou a haver, ressurgindo pouco depois, agora com discrição, como presidente do conselho de administração de importante delegação africana de prestigiada e preponderante empresa multinacional. Afinal, os amigos sempre eram para as ocasiões!...

Et la crise arriva!... tão inesperada como o Natal, principalmente na perspectiva do perú, conveniente e gargantuescamente alimentado durante os meses precedentes. Não entrarei em detalhes, pois creio estarem em condições de me perceber perfeitamente! Caído em desgraça, apontado a dedo como aquele através de quem a ira dos deuses se abateu sobre o povo, foi lapidado nas eleições. Os seus afilhados e conhecidos, espúrios indivíduos, não queriam ver-se associados ao seu nome e nunca conseguiu evitar que este, nos compêndios académicos de Teoria Económica tivesse passado a designar formalmente uma economia sob efeito devastador de um vórtice colapsante. O país convertera-se entretanto numa imensa capoeira repleta de galinhas histéricas e desnorteadas, onde acabaram por se banquetear inúmeros lobos, alguns deles com estatuto de convidados de honra. Terminou tudo num infindável mar de penas!

...

Onze anos passados, num paraíso tropical, uma televisão apregoava em tom fanhoso e dormente a árdua mas sustentada ressurgência dos escombros de um pequeno estado, muito à custa de compromissos que o tornavam um entreposto de uma pujante potência oriental, uma plataforma dourada de acesso priveligiado ao mercado do núcleo saudável dos países ricos da região. No terraço com arrebatadora vista para um mar convidativo, três amigos já extremamente à-vontade nos férteis meandros dos negócios em territórios com notórias debilidades no âmbito dos direitos humanos, brindavam enquanto discutiam as entusiasmantes notícias:

- Está na altura de voltar, não achas, pá? Creio que podemos dar o nosso contributo... Bom! Então à nossa, meu caro Pi Lin!...



EXPOENTES DE LYAPUNOV

Caracterizam a taxa média de divergência entre duas trajectórias nas proximidades de um atractor estranho, após perturbação das condições iniciais.
Um expoente principal positivo é indicador um sistema típicamente caótico; mais que um expoente positivo define o conceito de Hipercaos.













À memória de Benoit Mandelbrot

16 novembro, 2010

Trilhos



“Certos caminhos são a direito: são aqueles que nós traçamos; outros são tortuosos: são aqueles que se fazem a si próprios. E estes ultimos são muito mais agradáveis porque nunca sabemos de antemão o seu percurso e onde nos conduzem. Eles foram sendo traçados, pouco a pouco, pelas crianças, os cães e todas as pessoas que não se ralam nada que um caminho seja feito de uma maneira ou de outra”

J. M. Barrie - Peter Pan






“Tinha bruscamente a impressão de ver com mais clareza. Uma lucidez invulgar: sentia-me pleno de entusiasmo pela vida. Queria interrogar o destino, compreender o porquê da nossa existência, descobrir um terreno comum à ciência e à espiritualidade; inventar uma nova arte”



À La Recherche de Peter Pan © Cosey



Como hino à supremacia da Natureza, é primordial a busca incessante e curiosa de uma serena sabedoria e das veredas iluminadas pelos pequenos esplendores, como reafirmação do respeito pelos outros e pela Vida. Uma jornada que deve ser percorrida assumindo, singela e humildemente, a minúscula malha que somos na infindável tapeçaria do universo.


12 novembro, 2010

Fim de Semana Prolongado




Começou ontem à noite, com um vendaval.
Hoje, o dia fluiu escorreito. Nem parece Novembro. Dei por mim a saltitar com uns temas que não me saem da cabeça.
Dão chuva para amanhã (e vento forte, ah, ah, ah!).
Domingo à tarde rumo ao sul e já sei que nem vou dar pela viagem.


Os Vampire Weekend @ Coliseu do Porto

05 novembro, 2010

A Oportunidade


O dia era uma campânula sombria determinando os limites do seu mundo cinzento; sentia, incomodado, o desigual empedrado debaixo dos pés ao percorrer as ruas da cidade, sem emoções nem destino; o ar era quente e bafiento; tinha o cabelo sujo e irritava-o a comichão na cabeça; a roupa escura cheirava a fritos e ao fumo de uma pira de tabaco velho. Sentou-se na esplanada, indeciso sobre o que fazer; focou o céu durante infinitos segundos em busca de uma centelha de inspiração, com a noção de os seus olhos não terem fundo. Mudou de posição na cadeira, já sem dúvidas, agora terminal e completamente ôco.

Sobressaltou-o uma brusca aragem fresca e sentiu uma súbita e luminosa presença, cujo brilho transfigurava progressivamente o cenário; a esplanada resplandecia agora de côr; numa varanda, uma mulher sacudia uma toalha vermelha e as lojas trepidavam de movimento comunicativo e alegre; nos seus ouvidos, in crescendo, uma magnífica e melodiosa sinfonia; vinham-lhe à mente um ror de palavras belas, plenas de sentido, e pela primeira vez desde há muito tempo apeteceu-lhe, incrédulo, dançar, pintar, cantar, escrever.
A silhueta seguiu rua abaixo, o seu halo esbatendo-se imperceptívelmente com a distância. Pensou em levantar-se e segui-la, mas hesitou; olhou em redor para confirmar se os outros à sua volta teriam sido eles também tocados por tão intensa e fascinante assombração, mas apenas entreviu figuras baças e difusas. Levantou-se atemorizado e inquieto e correu ansioso, até ao fim da rua. No cruzamento, perscrutou todas as direcções mas não conseguiu descortinar nada para além da densa e amorfa multidão que entretanto se começara a aglutinar em seu redor.
Ficou ali parado, resistindo aos inerciais fluxos da mole, perdido, uma prece nos lábios, olhos fechados, prometendo a si próprio e às estrelas das quais ainda se lembrava, seguir a luz caso ela voltasse, caso o tempo regredisse por uns minutos apenas. Uma última e intensa faísca trouxe-lhe à memória as exaltantes sensações que o tinham assaltado por tão breves momentos e pouco depois apagou-se.

Retrocedeu e começou a subir a rua, de volta a casa; sentia, mais que nunca, as irregularidades da calçada a cada passo; a tarde estava abafada e húmida; nuvens pesadas, côr de chumbo, adensavam-se sobre a sua cabeça.