22 julho, 2010

Urbanidades (IV)







Travessa do Bonjardim (Porto)
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15 julho, 2010

Terapias




- Desde que comecei o tratamento, sinto-me muito melhor.

Disse-o no entanto, ostentando o ar de quem não estava sequer a sentir-se.
Desfiou de um modo rígido, semi-automático os sintomas e repercussões do seu bem-estar, enquanto dois ou três tiques lhe afectavam a pálpebra esquerda, um tendão do pescoço e um canto da boca. O médico ia tomando notas.
Explicou-lhe que apenas se mantinha a desconfiança da mulher, que mandava a filha segui-lo e que agora também o patrão pensava que ele o roubava (mas que não!...) tendo inclusivé contratado um gajo para andar atrás dele. Na rua também o incomodava que as pessoas o perscrutassem fixa e obsessivamente.
O médico levantou os olhos do papel, mirou-o por cima dos óculos com um arquear de sobrancelha que revelava profunda condescendência e retomou as anotações depois de se ajeitar na cadeira, instante após o qual, o paciente explodiu, transtornado.
- E para que saiba, parei de tomar aqueles comprimidos cor de rosa que me receitou, ...que a mim não me engana! O que o doutor quer é envenenar-me, que eu bem sei...

O médico parou de escrever, pousou a caneta e recostou-se como que almejando a uma posição mais confortável. O interlocutor, agora de tom violáceo, rosnava exaltado, amplificando os gestos bruscos e extemporâneos.
- ... e também mandou a mulher pôr-me umas gotas no chá que bebo todas as noites, antes de ir para a cama. Mas isto acaba aqui hoje, ai acaba!...

Pôs-se de pé num ímpeto e sacando do bolso um x-ato adequado ao corte de alcatifas, abriu-o intimidantemente, revelando a amplitude plena de todas as suas reluzentes e acopuladas lâminas.
O médico esboçou um gesto conciliador, alcançou com inexpressiva naturalidade um frasco pousado no canto da secretária de onde retirou duas pastilhas que levou à boca enquanto se levantava e dirigiu-se ao lavatório, onde encheu com água o copo aí pousado. Virou-se e enfrentou serenamente o transtornado interlocutor que entretanto avançara dois passos na sua direcção, em solavancos pouco controlados.
- Porque quando cá venho, só o doutor é que fala, sempre a tentar enrolar-me com falinhas mansas, que eu tenho isto e aquilo. Mas eu sinto-me em forma como nunca ...

E esboçou com determinação uma ampla e vigorosa cruz com a mão mais letal. O clínico levou o copo à boca e sorveu um longo trago.
- Aliás, acho que quando sair daqui vou mudar de médico... Qual quê! Eu nem sequer preciso de um ...

Suspendeu o gesto com o braço em riste, estacou hirto e encarou horrorizado o psiquiatra que diante de si revirava os olhos, começou a espumar pela boca e caiu de chofre e com estrondo no chão, em convulsões. Todos os remotos vestígios de coerência, assertividade e presença de espírito disponiveis no seu receptáculo físico convergiram num ápice para a sua mente insondável. Virou costas, abriu a porta e desatou a gritar.
- Socorro! Depressa, enfermeira, o doutor está a ter um ataque!

Como um fardo, no chão do consultório, o médico apenas esboçou um sorriso enquanto desencandeava um ultimo estrebuchar. Bendito Alka-Seltzer!

08 julho, 2010

A Boa Educação




A sua elegância era intrínseca, a sua distinção reverberante e a sua pose espontânea de etiqueta. Por isso, quando por ocasião da inauguração do seu veleiro de dois mastros entalou o dedo no molinete da gávea, logrou ruborizar as faces de duas dezenas de selectos convidados ao não conseguir reprimir um indecoroso “Irra!...”
Olhou sobranceiro a extremidade acidentada, a unha cromaticamente a transfigurar-se de forma progressiva e inapelável, a perspectivar uma prolongada continuidade de uma dor aguda e uma previsível, desconfortável e inestética muda forçada da dita. Com um trejeito por demais rasteiro de tão vulgar, voltou a chocar os distintos convivas, interjectivando então um escandaloso e vernacular:
- Que maçada!...

01 julho, 2010

(des) Harmonia