29 dezembro, 2010

As Bençãos (Uma Espécie de Conto de Natal) - [ 2 ]





...até um dia de primavera do ano das esperançosas revoluções de irreverentes juventudes. Com um misto de surpresa e angústia, a aldeia constatou o início de obras de renovação no vetusto casebre-berço dessa então já esquecida filha pródiga da terra e quando, poucas semanas depois, esta aí chegou acompanhada por uma furgoneta com uns escassos móveis e caixotes como carga, algumas almas paralisaram com a súbita e incomodativa picada do remorso e desde logo passaram a manter uma prudente distância. A patroa da venda local era o seu único contacto social no lugar e, em contraponto, a fonte priveligiada de informações para os demais habitantes, muitos dos quais se benziam após ouvirem a descrição dos insólitos detalhes sobre as aberrações da sua anatomia, os quais eram especulativa e geométricamente amplificados ao longo das cadeias de conversas. O auge dos pavorosos enredos foi atingido com os relatos de emigrantes regressados para as festas de Agosto, dando conta de mitos recorrentes em Paris sobre compatriotas que faziam bom dinheiro oferecendo-se como cobaias para testes em industrias farmacêuticas e de cosméticos, alguns mesmo - uma elite! - trabalhando para laboratórios secretos do governo onde eram estudados os efeitos que as radiações “qualquercoisanéticas” e mesmo - credo! - as bombas atómicas tinham nas pessoas. Quando, por fim, alguém se cruzou com ela junto ao regato, de regresso a casa num dia de suave crepúsculo de outono, jurando nessa mesma noite na taberna, pelos filhos e por alma da mãe “que Deus tem”, dela irradiar um halo iridescente multicolor de tétricos efeitos espectrais, não havia um que não fugisse mal a avistava ao longe.
Podia pois passear (naquele seu tão peculiar estilo arrastado de se deslocar aos sacões) pelos frondosos bosques, vibrantes de vida, recolhendo folhas e singelas flores silvestres, ou pelas soalheiras veredas bordejando as sussurrantes searas, livre de qualquer risco de ser importunada. No entanto, o largo dos seus dias passava-o sentada na decrépita poltrona que adornava um canto do alpendre, ora entoando com a sua voz telúrica cânticos que pintavam paisagens alienadas, mas sobretudo, um sorriso adivinhado nos supostos lábios rebentados por poliposos tumores violáceos, recordando em simbiose com a primordial memória da terra os impressivamente vívidos tempos de infância, de quando desfilava e se rebolava, despreocupada e feliz, por aqueles belos prados verdes.

...

Apagou-se, serena, a alma esvaindo-se do seu corpo surreal numa límpida noite de Dezembro de mil novecentos e setenta e dois, na sua aldeia que a neve cobria de um manto reverente de silêncio branco. No céu, uma chuva de estrelas jubilava com a renovação do ciclo dos incompreensíveis mistérios.


(Continua...)

22 dezembro, 2010

As Bençãos (Uma Espécie de Conto de Natal) - [ 1 ]





Foi atingida por um caprichoso relâmpago, fugia o bando de crianças em busca de refúgio da inesperada e aziaga intempérie, por um verde prado entremeado por retorcidas azinheiras. Era até então uma menina saudável, alegre, determinada, com uma curiosidade latente e muito zelosa das suas obrigações.
Alguns vizinhos tendo acorrido aos apelos de aflição conseguiram milagrosamente reanimá-la, mas o implacável ferrete da tormenta tinha deixado a sua indelével marca para sempre; uma permanente crepitação nos ouvidos, uma esgrouviada e extravagante exoftalmia no olho direito, um braço esquerdo inchado, trambolho que nunca reverteu totalmente com o tempo, e uma cabeleira em farripas impenetráveis como um novelo de arame farpado, faziam desde então parte da imagem que o espelho de futuro lhe retribuiria.
Retomou receosa a rotina da sua vida na aldeia mas, aos poucos, ia sendo deixada de lado pelos seus companheiros de diversão e os alguns sustos que o seu súbito aparecimento inadvertidamente causava nalguns habitantes foram incrementando a desconfiança das gentes da terra a seu respeito. Logo os abrenúncios com base nos rumores de conluios com o maligno vieram a lume. Afinal, quem senão um endemoninhado sobreviveria tão disforme, tão desprezado por Deus e pelos anjos, após ter sido abrasado por um raio?
Sentindo progressivamente que a filha se tornava uma pária daquela acintosa e fechada comunidade, encomendaram-na aos cuidados do padrinho, amanuense remediado que há muito vivia na cidade e que em sua casa a acolheu, proporcionando à infausta uma possibilidade de um novo fôlego para a sua vida. Tinha então catorze anos. Tendo-lhe sido facultada uma parca mas esmerada e honesta educação, frequentou uma escola de lavores e foi de uma forma dispersa acumulando vagos saberes que assimilou dentro das suas embotadas possibilidades. Arranjou colocação numa drogaria-herbanária, onde não tendo apresentação para atender os fregueses fazia recados e arrumações no armazém, local de irritantes emanações e intrincadas fragrâncias, no qual passou grande parte do seu tempo, cumprindo diligente as suas tarefas durante quatro anos tranquilos. Quando o incêndio deflagrou, nem caixeiros nem marçanos se lembraram que ela estava lá atrás, no seio do fogo voraz, acabando por ser resgatada por um meticuloso bombeiro, inerte, sufocada por densa e exótica mescla de vapores, resultado de estranhas reacções entre benzénicos e potássicos compostos com indecifráveis misturas de especiarias e bizarras ervas raras de obscuro propósito. A sua pele passou desde então a exibir uma tonalidade esverdeado-macilenta e a sua respiração alternava entre os silvos entrecortados por uma pieira grasnada e uns roncos arranhados numa sequência de saltos de cremalheira. Manteve no entanto, obstinada, o firme objectivo de manter as rédeas do seu destino nas suas próprias mãos, consolidando a ambição de um dia poder ser apontada como referência maior, alcançar uma posição destacada à custa das suas árduas acções e empreendimentos. Despediu-se do tutor, escreveu aos pais dando conta da sua decisão e rumou ao estrangeiro onde a então titubeante década de 50, refeita da ressaca do pós-guerra, prometia uma prosperidade imparável. Foi mandando cartas, primeiro da Suiça, depois de França; o pai morreu ao fim de dois anos, a mãe, passados 8 meses e o padrinho rumou a África onde se estabeleceu, abrindo um comércio.
Derramou-se então a ampulheta da sua pungente história e os grãos de areia dispersaram-se, consequência de um sopro, pela praia da memória das gentes.


(Continua...)


Interlúdio para Declaração de Intenções: Aos habituais e aos eventuais frequentadores do Cabo, os Ventos aqui exprimem os votos de um bom Natal e um Ano Novo pleno de serenidade


14 dezembro, 2010

Eppur Si Muove




É vasta a lista dos eruditos injustiçados e desprestigiados pelas rupturas de conceito que ousaram apresentar aos seus contemporâneos. Ocasionalmente ocorre lembrar-me da mítica expressão em título que com o tempo se tornou um libelo anti-obscurantista e do episódio que lhe esteve na origem, no qual Galileu, por ordem do tribunal, após renegar publicamente as suas revolucionárias descobertas sobre os movimentos relativos da Terra e do Sol, a teria pronunciado em surdina. No entanto, o motivo porque a recordo não é tanto a celebração de qualquer vitória da luz sobre as trevas ou a lição da certeza perseverante do sábio (embora após uma reflectida tibieza perante incomensurável adversidade) mas antes, quando confrontado com uma ideia, ocorrência ou desafio mais refinado ou improvável, o de forçar-me a encarnar no papel de um pouco plausível inquisidor de boa fé no julgamento de um qualquer Galileu e prudentemente tentar encontrar indícios que pudessem levar a distanciar-me ou mesmo a frontalmente discordar do previsível veredicto final. Um instinto de alcançar mais longe que o imediato e mais além que a minha confortável vizinhança, sem me deixar intimidar seja por que cânones intuídos e vigentes, ou mesmo pelo que os meus próprios olhos, por vezes enganadoramente, testemunham. Porque no fundo, tenho tendência a desacreditar de uma época abstrusa em que nos é facultado compartilhar momentos com um moderno e brilhante executivo trazendo consigo e ao mesmo tempo, tanto um “gadget” “hitech” de “design” futurista como uma inescrutável e esotérica pulseirinha milagrosa.

Os reptos que hoje enfrentamos e com que nos confrontaremos no futuro exigem novas formas de articular o pensamento e a compreensão do mundo e das sociedades sofisticadas e em evolução constante, como aqueles dos quais fazemos parte. Esta complexidade emerge a partir de um crescente número de variáveis independentes que começam a interagir e a correlacionar-se de forma imprevisível. Estes sistemas cada vez mais complexos são evolucionários e abertos, processam e incorporam ou adaptam toda a nova informação disponível de um ambiente mais alargado, não são simples e preditivos, mas sim não lineares, e alteram as suas reacções em função de estímulos imediatos.
O âmbito de enquadramento é excepcionalmente lato sendo pois vital para sua plena compreensão, uma maior interdisciplinaridade na análise dos problemas, no aprofundamento do conhecimento sobre as estruturas, os comportamento e a dinâmica das inúmeras fracções que os integram.

Há que dar pois, um passo atrás.
  1. O todo é sempre maior que a soma das partes e a sua compreensão não pode ser atingida investigando apenas alguns dos seus módulos estanques (será o aquecimento global uma irreversibilidade, função exclusiva do aumento do CO2?).
  2. Pequenas perturbações em sistemas discretos ou neutros podem resultar em alterações significativas e inesperadas tendo em conta o âmbito alargado com o qual interagem e se relacionam (Quais as últimas consequências da introdução de uma espécie exógena num ecosistema equilibrado?).
  3. A ressurgência ou emergência sobressai como conceito chave. Corresponde a propriedades ou padrões de alto nível, que se formam com as interacções de agentes locais e pontuais, de forma absolutamente espontânea. Distinguir a componente emergente de um fenómeno dá-nos indicações sobre o tipo de informação à qual devemos prestar atenção e ajuda-nos a colocar as questões mais pertinentes sobre os sistemas em análise. (A partir de que epifenómenos um manifesto de massas se torna uma avalanche social imparável?)

Uma forma de pensamento estratégico e igualmente não linear impõe-se desde logo para reconhecer as pistas das mudanças eminentes. Como para o inusitado inquisidor sensato, a perspectiva é importante e é fundamental saber reconhecer o que estamos a ver ou a testemunhar e enquadrá-lo no seu devido contexto (local-global). A visão do mundo através das lentes da complexidade deve estimular-nos a reavaliar e rever os nossos actuais métodos de análise, os nossos conceitos, planeamentos, metodologias e consequentemente a realinhar as directrizes da nossa abordagem aos múltiplos e simbióticos mundos que também compartilhamos.


Com a devida reverência aos trabalhos sobre “Complexidade” de Irene Sanders


07 dezembro, 2010

Estado de Graça


Entrámos, esquivando-nos enfim à noite hostil. A mesa acolheu-nos, mesmo em frente à porta, com pratinhos dispersos com um irresistível paio e torresmos de redanho, outros com rodelas de rábano, para limitar os danos, e umas quantas garrafas de vinho tinto de escolha, préviamente abertas. A atmosfera langorosa enroscava-se em nós e antes da chegada dos que ainda faltavam, caíram-nos à frente os cogumelos com azeite e ervas para rechear com queijo de ovelha derretido ao ponto.
Ei-los afinal, retardatários que irrompem soprados por rajadas agrestes, completando finalmente a franca e calorosa roda de amenas e libertinas memórias, oportuníssimos para a perdiz de escabeche.
Como passa a deslizar, plácido, imperceptível, subtilmente dissolvendo os secretos males de cada um, (o tempo) um intangível e resplandecente serão!
Cachaço no forno com batatas douradas e esparregado, histórias da vida e inventadas, bagaceiras várias, medronho e falso zimbro, tramas antigas, mitos desfeitos, projectos para o ano.
Em plenitude, deambulando por clássicas vielas seguimos fluxos de juventude inquieta e altruísta, desbravámos bares alegres e cativantes, acalentámos fantasias e ao longo da noite, agora cúmplice, deixámo-nos evaporar, embriagados.

Defrontámos de manhã um sol ousado, determinado a acompanhar-nos no derradeiro percurso. Beijado pelo rio cansado almejando o próximo meandro, o risonho casario do Vale do Guizo, indolente da amenidade da tarde e prazenteiro da Restauração, deu por si surpreendido com a nossa chegada tardia.
Enguias... primeiro, fritas, soberbas, depois a caldeirada (Oh!...deuses!). No salão, virtuosos do acordeão desfiavam, em despique reverente, temas exuberantes, frenéticos, nostálgicos.
Com o Sado em fundo, completámos o ritual. Abraçámo-nos. Despedíamo-nos cientes das incertezas, dos tantos escolhos nos caminhos, da perenidade dos momentos e dos afectos.
Até para o ano, sempre!...