28 março, 2011

Cobradores de Fraque (Branco)


Chegado a este ponto, é muito desanimador concluir que em três décadas de democracia com parlamento e governos de cariz partidocrata, os resultados (melhor dizendo, resíduos) no que refere à situação actual de Portugal, não diferem muito dos que me passaria pela cabeça que seriam, caso a gestão do país tivesse sido conduzida todos estes anos por um grupo de idiotas. Que não me iludo! A culpa também é nossa. Durante tantos anos, cega e negligentemente fomos indiferentes aos exageros cometidos, tomando por devidos e garantidos todo o conforto e prosperidade que usufruíamos (... e o que nunca pecou, que atire o próximo PEC!).
O desgaste é enorme e partilho com um cada vez maior número de portugueses, notáveis de algumas forças políticas do regime incluídos, ser este o momento propício para encetar uma clara e arrojada mudança de sistema político.

Com eleições no horizonte, são várias as alternativas que se me apresentam no que respeita à minha tomada de posição, cenários e modelos que submeti a interferências, usando variáveis provocadoras e perturbações estilhaçantes:

  • Partidos políticos do espectro (que palavra tão bem empregue!) parlamentar: ao representarem a continuidade da viscosidade instituída, não constituem opção.
  • Grupo de idiotas: no caso de algum se apresentar a sufrágio nas próximas eleições, mesmo que sob a designação de partido, pairariam sempre dúvidas sobre se não seriam, uma vez mais, políticos a fazer passar-se por idiotas. Devem recordar-se tão bem como eu, de alguns exemplos!
  • Novo partido: mesmo concedendo ao seu núcleo fundador os máximos créditos de seriedade, confiança e patriotismo acima de qualquer suspeição, caso se apresentasse a votos seria olhado pelo povo com o inerente receio e enfiado no mesmo saco dos outros. Embateria em espessos muros institucionais e sofreria o desprezo da comunicação social ou tê-la-ia às canelas. Se bafejado pelas graças, teria um ou dois deputados eleitos que se veriam a esbracejar, impotentes, no grande caldeirão do regime, enfiados em comissões, despachados para visitas com objectivos difusos e caso, finalmente, chamados a desempatar no debate sobre uma matéria vital, sujeitos a pressões tais que nem os históricos de referência do bom senso universal aguentariam. Serviria fundamentalmente como argumento comprovativo de um país gozando de saudável e irrepreensível tolerância e atmosfera democráticas.
  • Voto em branco: muitos pensam que é uma atitude inútil, que apenas serve para imediatamente após a contagem final, os sábios da nação adoptarem a postura de sáurios lacrimejantes e apelarem à reflexão (dura em média uma semana, este lamento!).

Concluí no final, que é esta última, no entanto, a minha opção preferida. Creio também, que ao abordar o tema, o fiz com uma perspectiva diferente. Senão, vejamos:

Imaginemos o seguinte cenário: os votos em branco atingem uns embaraçosos e inauditos 15% (10% já chegavam). Saem a terreiro os crocodilos do costume mas desta vez, a percentagem de censura tem uma equivalência real ao terceiro grupo com representação na assembleia. Os que livremente votaram em branco poderiam, com toda a legitimidade democrática, unir-se, manifestar-se, desfilar avenidas da Liberdade, dos Aliados, dos Combatentes, 1º de Maio abaixo, exigindo (reforço e sublinho: exigindo!):

“ Tu! Fulano-Tal, o inerte quadragésimo e pico deputado pelo círculo eleitoral de Lisboa, o funcionário da distrital / marionete, deputado fim da lista do círculo do Porto: não te queremos na Assembleia da República. Nós, estes muitos milhares que estão nesta marcha e que, no mínimo, representam os votos que te elegeram e com base nos quais te sentas aí na fila de trás a consumir ar no Hemiciclo, nós saímos de casa esta tarde para proclamar que temos o direito de preferir que o teu lugar fique vazio e que é nossa intenção sair à rua até que todos os lugares que os nossos votos representam em assentos parlamentares, fiquem vazios”.

Poderiam os zelosos guardiões do sistema invocar formalismos diversos, mas nunca a legitimidade do protesto. É o pleno argumento da expressão do voto popular que tanto esgrimem! Era um primeiro passo; pôr um cobrador de fraque atrás dos representantes do regime que individualmente elegemos mas que não escolhemos e sobretudo, nos quais não nos revemos, quando não dos quais profundamente discordamos. Sim, juntar a força de quinze por cento de votos em branco e assanhar-nos, reclamando os correspondentes lugares vazios no parlamento. É que não pensem que sou só eu; são vários os membros da elite nacional que também já exprimiram publicamente o seu apoio moral a esta medida.

Mas não seria fácil! À parte os formalismos, viriam ainda os reputados constitucionalistas e outros juristas defender a tábua de lei, atirando aos nossos olhos a areia das habituais contingências legais, inevitavelmente baralhadoras e que, se devidamente esmiuçadas, permitem uma multitude de interpretações e não menos zonas cinzentas de ilibatórios refúgios. Poderíamos então ser obrigados (se tivesse mesmo que ser!) a fundar um partido político; um movimento assumidamente fracturante que se apresentaria ao eleitorado com o compromisso de os seus candidatos a deputados, caso eleitos, e com todo e o devido respeito pela AR, não ocupariam os seus lugares no Hemiciclo. Não conheço os regulamentos do parlamento e é possível que a sua permanente ausência não seja institucionalmente permitida. Nesse caso, apresentar-se-iam então vestidos de branco, não proporiam moções, não tomariam posse da palavra, não esboçariam qualquer gesto, saíriam durante a votação de qualquer decreto e quando a Srª Merkel ou o Sr. Hu Jintao fossem convidados de uma qualquer sessão solene, ostentariam então uma atitude impassível, sem aplaudir e sem os inerentes salamaleques, sempre de branco, sem sombra de qualquer desrespeito para com a Assembleia.

Dois últimos detalhes:
Aqueles abstencionistas que não se apresentam nos actos eleitorais pela mesma razão defendida pelos que não votam em branco, por ser absolutamente inútil, teriam desta vez um incentivo para mudar algo e então, sem extrapolar muito, os votos no branco não seriam 15%, mas 20% ou mais. E um quinto de cadeiras vazias ou sem expressão na AR, há que admitir, era um abanão nas nossas intocáveis mas tão corroídas instituições!
Caso (também podia acontecer!) o povo repudiasse esta nova alternativa e nenhum "deputado branco" fosse eleito, então democraticamente expressa a sua vontade, mais ninguém teria legitimidade para quaisquer reclamações, para quaisquer exigências de mudança. Apenas poderia concluir-se que não só estamos efectivamente bem assim, como merecemos estar.

Nesta encruzilhada, não tenho a presunção de apontar um possível caminho. Sei que qualquer ele possa ser, passa necessariamente por uma alteração profunda de todos os poderes e mecanismos do Estado da Nação. Em plena consciência, com toda a insolência, todo o inconformismo, toda a subversão e toda a vontade de mudar este sistema político vigente, que o texto acima representa, vou votar em branco. E podem desde já contar comigo quando convocarem o desfile para descer as avenidas, como tão bem e tão eficazmente souberam fazê-lo não há muito tempo. Comigo estarão seguramente outros cem mil.




20 março, 2011

Blastasias e Aposfémias





Com uma semana inapelávelmente subjugada às avassaladoras ocorrências no Japão, vejo-me na contingência de emitir descargas biliosas, eventualmente iconoclastas, algumas totalmente descontextualizadas:



* Continuam a levantar-se os fúteis hipócritas, que se comprazem em corriqueiras viagens low-cost para weekends em urbes cosmopolitas ou semanas em remotas e catalogadas praias para férias excursionistas de sonho, em zombaria para com os teimosos e patéticos pioneiros da aeronáutica, que na sua busca aperfeiçoadora de estrambólicas máquinas voadoras, se estampavam gloriosamente em busca de uma vertiginosa e utópica ambição.

* No equilíbrio do deve e haver universal, quando a alguém, numa daquelas improbabilidades da unidade para tetraliões, sai um jackpot, é consequentemente inevitável, na outra extremidade da regente distribuição gaussiana, algum desgraçado, à sua pequena escala, ter de enfrentar um infortúnio de proporções cósmicas.

* Mesmo com uma persistente, insuportável e perene ventania, são precisos no mínimo 2400 geradores eólicos para produzir o mesmo que uma central nuclear de média dimensão.

* Os grandes desastres, os que profundamente me afligem, são os premeditadamente maliciosos: ensaios recorrentes em seres humanos desprotegidos, inadvertidos e inocentes (infecciosos, radioactivos, sociológicos, políticos, ...), super-vírus informáticos, concebidos para atacar sistemas de controlo industriais, normalmente em unidades de produção ou serviços críticos ou essenciais, com intuitos perniciosos e terroristas (o Stuxnet), genocídios permitidos e quantas vezes tão bem nutridos por tantos, que do alto de institucionais palanques debitam papagueando, firmes mas estafadas condenações.

* Entre tantas antevisões e projecções futurológicas, negras ou brilhantes, sobre esta nossa sociedade moderna, aberta e global, uma há que me agrada particularmente e que anseio vivamente se concretize (quanto mais não seja pelos efeitos desmistificadores e profilácticos) : ainda durante esta década, serão os físicos a fazer as previsões sobre economia. Contráriamente aos actuais eminentes macro "banha-da-cobristas", gurus e masterizados analistas produtores de palpites, que racionalizam e extrapolam o amanhã com base em médias e comparações com performances e ocorrências do ontem (tempo passado esse, com o qual não aprendem rigorosamente nada!), os econo-físicos estarão em condições de lidar, eles sim, com sistemas complexos, loops condicionados, efeitos em cascata, multivariabilidade difusa, caos, tomadas de decisão irracionais e outras influências destabilizadoras, estatísticamente improváveis e dificilmente antecipáveis.


12 março, 2011

Oh! Cassandra...






Se dou a ideia de que passo a vida a preconizar só desgraças, é porque sou pragmático por natureza. Utilizo o raciocínio dedutivo para generalizar e creio que isso acaba de certa maneira por se confundir com um vaticínio negativo. Sabes porquê? Porque a realidade não passa da soma das profecias negativas que se cumpriram.

...

Mas aquilo que mais me desgosta são as pessoas que não têm ponta de imaginação. Aqueles a quem T.S.Eliot chama “The Hollow Men”. As almas que preenchem sem piedade a falta de imaginação com pedaços de palha seca, sem terem sequer consciência do que estão a fazer. Pessoas insensíveis que te lançam à cara palavras vazias de sentido, tentando obrigar-te a fazer o que não queres (...) espíritos tacanhos e intolerantes, sem imaginação, são como parasitas que transformam o hospedeiro, mudam de forma, sobrevivem e vingam. São uma causa perdida e eu não quero vê-los aqui por perto.


Haruki Murakami - Kafka à Beira Mar



03 março, 2011

Adagio






[Ela]...

...ficou surpreendida ao vê-lo aparecer de rompante no atelier e foi-se deixando ternamente enredar à medida que ele, divertido e sedutor, empolgante e tentador, embora com uma difusa névoa a toldar-lhe aquele tão especial brilho do olhar, argumentava no sentido de a convencer a fechar a porta e a desalvorarem ao sabor de fugazes ímpetos, surgidos em eventuais extemporo-diraquianos momentos futuros. Que a cidade (o mundo!) nessa mesma e precisa tarde, fruto de uma requintada conjuntura astro-quântica, se lhes era oferecida, totalmente exposta e revelando os seus segredos, qual virgem impúdica subjugada, a seus pés...


[Eles]...

... investiram intrépidos por acolhedoras ruas palpitantes de browniana agitação, calcorrearam empedradas e soalheiras vielas com o sol quente a temperar-lhes os rostos, as implícitas sombras (sinuosas e aderentes) a lamber-lhes as irreverentes passadas, partilharam, lambuzando-se, um gelado em acelerada perda de consistência, vasculharam alfarrabistas em busca de pistas para o relicário da pedra filosofal, posaram entre risadas espontâneas em improváveis palcos e operáticos recantos, cruzaram insondáveis portais para alfacentaurianos universos. Deitaram-se com deleite na relva do parque...


[Ele]...

...continuava sem saber como dizer-lhe que a ia deixar...





Mahler - 9ª Sinfonia : 4º Mov (Karajan)