05 novembro, 2010

A Oportunidade


O dia era uma campânula sombria determinando os limites do seu mundo cinzento; sentia, incomodado, o desigual empedrado debaixo dos pés ao percorrer as ruas da cidade, sem emoções nem destino; o ar era quente e bafiento; tinha o cabelo sujo e irritava-o a comichão na cabeça; a roupa escura cheirava a fritos e ao fumo de uma pira de tabaco velho. Sentou-se na esplanada, indeciso sobre o que fazer; focou o céu durante infinitos segundos em busca de uma centelha de inspiração, com a noção de os seus olhos não terem fundo. Mudou de posição na cadeira, já sem dúvidas, agora terminal e completamente ôco.

Sobressaltou-o uma brusca aragem fresca e sentiu uma súbita e luminosa presença, cujo brilho transfigurava progressivamente o cenário; a esplanada resplandecia agora de côr; numa varanda, uma mulher sacudia uma toalha vermelha e as lojas trepidavam de movimento comunicativo e alegre; nos seus ouvidos, in crescendo, uma magnífica e melodiosa sinfonia; vinham-lhe à mente um ror de palavras belas, plenas de sentido, e pela primeira vez desde há muito tempo apeteceu-lhe, incrédulo, dançar, pintar, cantar, escrever.
A silhueta seguiu rua abaixo, o seu halo esbatendo-se imperceptívelmente com a distância. Pensou em levantar-se e segui-la, mas hesitou; olhou em redor para confirmar se os outros à sua volta teriam sido eles também tocados por tão intensa e fascinante assombração, mas apenas entreviu figuras baças e difusas. Levantou-se atemorizado e inquieto e correu ansioso, até ao fim da rua. No cruzamento, perscrutou todas as direcções mas não conseguiu descortinar nada para além da densa e amorfa multidão que entretanto se começara a aglutinar em seu redor.
Ficou ali parado, resistindo aos inerciais fluxos da mole, perdido, uma prece nos lábios, olhos fechados, prometendo a si próprio e às estrelas das quais ainda se lembrava, seguir a luz caso ela voltasse, caso o tempo regredisse por uns minutos apenas. Uma última e intensa faísca trouxe-lhe à memória as exaltantes sensações que o tinham assaltado por tão breves momentos e pouco depois apagou-se.

Retrocedeu e começou a subir a rua, de volta a casa; sentia, mais que nunca, as irregularidades da calçada a cada passo; a tarde estava abafada e húmida; nuvens pesadas, côr de chumbo, adensavam-se sobre a sua cabeça.




3 Comments:

Anonymous henedinaantunes said...

Pedir um post e depois não o comentar não está certo. Pensei que com o comentário no outro estava "safa". Mas como ninguém comenta, são uns tolos, comento eu.
"seguir a luz caso ela voltasse, caso o tempo regredisse por uns minutos apenas. "
If, este é um pensamento dos tímidos.
Como sou uma orgulhosa custa-me admitir um diagnóstico precipitado :)
De qq forma, já confundi escritor com a pessoa que escreve e estou em recuperação. Estou a "ressacar".
Não vou confundir aqui.

09 novembro, 2010  
Blogger Windtalker said...

...a velha história dos personagens à procura do autor! De qualquer forma, a pessoa que desfia umas linhas nunca é o autor, é apenas uma máquina de escrever. O escritor, desdenha das visões da obra; o tímido, seduz inseguro, com ternas fantasias maiores que o seu próprio mundo.
(E agora que já intuí desse lado uma alma gémea...)Quanto a ressacas:
"I'd rather have a bottle in front of me than a frontal lobotomy."

10 novembro, 2010  
Anonymous henedina said...

Olhe que deu o único prémio Nobel da medicina português.

10 novembro, 2010  

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