29 outubro, 2010

Maus Fígados



Um em cada cinco portugueses sofre de perturbações psiquiátricas
(Público - 23.03.2010)

Um em cada cinco portugueses sofre de insónia
(DN - 20.03.2008)

Um em cada dez portugueses sofre de doença renal crónica
(RTP1 - 11.03.2010)

Um em cada cinco portugueses sofre de disfunção sexual
(DIOL - 14.02.2006)

Uma em cada cinco mulheres dos 18 aos 64 anos em Portugal tem infecção por Papilomavírus Humano (HPV), responsável pelo cancro do colo do útero
(Público - 16.01.2010)

Mais de 30 por cento da população portuguesa sofre de dor crónica
(Público - 13.10.2010)

Um em cada 5 portugueses pode ter cancro de pele
(JN - 20.05.2010)



Cruéis estatísticas! Com base nesta curta lista, podemos deduzir sem fazer muitas contas que vinte por cento dos portugueses padecem de pelo menos duas, de entre as maleitas referenciadas acima. Extrapolando um pouco, para um rol mais abrangente e pormenorizado de doenças, disformidades, inadequações, pestilências e défices, prontamente se conclui que metade da população lusa é atormentada por, no mínimo, quatro a cinco de entre todas elas, estando sujeita simultâneamente tanto às mais incapacitantes como às mais embaraçantes. Tal diagnóstico pode fácilmente ser comprovado no terreno, bastando apenas prestar atenção a anódinos diálogos entre duas quaisquer freguesas de um dos inúmeros mercados do país, que se cruzem extemporâneamente uma semana após o ultimo encontro: o desfiar dos achaques e das infelicidades é interminável.
Eu próprio, não me sentindo enquadrado em nenhuma categoria óbvia, por evidente falta de sintomas, começo a desconfiar se não serei portador de algum inescrutável distúrbio.

Eis pois, os portugueses, os ungidos das moléstias!

Tenho no entanto outra leitura: tudo o atrás descrito, dissimula um gritante quadro psicossomático associado a agudas crises de hipocondria!
Desde o fim da segunda dinastia que tem vindo a desenvolver-se entre nós um género de atrofia da mente, do tipo gânglio incómodo, que tendo começado por ser de origem filipina, foi diversificando as fontes: pombalina, francesa, monárquica, republicana, fascista, revolucionária, europeia, ... . Em suma, uma espécie invulgarmente mutante mas curiosamente endógena, que desde o primordial Prior do Crato está na origem de permanentes azias e nos tem mantido constantemente debilitados, autocomplacentes vítimas do nosso inescapável mal-estar. Co-existem ainda para além disso desde essas eras, algumas variedades melancólicas dos afrontamentos (o fado e a saudade) e da obstipação (o destino e o conformismo a ele associado), que tendem a agravar substancialmente o quadro clínico.
Quando em algum momento, mais desafogados, damos conosco a alucinar que nos sentimos em plena forma, logo tomamos um xarope regulador, receita de sucessivos governos de políticos indigentes e nefastos que nos anestesiam com as mentiras piedosas que queremos ouvir, mas que sabemos terem contra-indicações graves, ou optamos pela devastadora automedicação de eufóricos antidepressivos que nos induzem, alegremente e por intermédio de um estupendo impulso, a saltar em direcção ao abismo, com o consolo de nos terem dito que só teremos de pagar quando lá chegarmos, a 36 prestações e sem juros.

Consequentemente, todas as patologias das nossas estatísticas são unicamente as penas reflexas do nosso desconfortável azedume e de angustiantes invejas.

Assim sendo, para tamanho cúmulo de desespero do corpo e da alma, resta-nos a fé. Numa salvação, numa cura, numa purga, em resumo, num milagre. Sobressalto-me com místicos vislumbres de Portugal como um imenso templo de um formidável e acérrimo culto apocalíptico- masoquista, cujos fiéis aguardam desconfortáveis a grande catástrofe, venha ela como um degelo glaciar, uma invasão amarela ou uma chuva de asteróides. Esses mesmos crentes, que imobilizados por um torpor expectante, toleram-se com a mesquinhez do mal comum, ansiando cada um egoísticamente escapar ao Armagedão mercê das sortes fortuitas da roda do Euromilhões ou do prometido lugar no protectorado de um poderoso e influente fariseu.
Seja como fôr, todos assumimos a inevitabilidade do caos embora alguns, mais impacientes, desesperados e metódicos, levem os preparativos para a Grande Derrocada já bem adiantados. Não querem de modo nenhum, deixar nada ao acaso.




22 outubro, 2010

From Gardens Where We Feel Secure *



A Summer Long Since Passed



Too Bright For Peacocks



With My Eyes Wide Open I'm Dreaming




It's Too Hot To Sleep



* Album de Virginia Astley - 1983 (Lounge Campestre Inglês - género Bucólico-Pastoral)


15 outubro, 2010

O Fetiche






O adiamento de uns trâmites jurídicos por falta de comparência de um dos advogados tinha vindo mesmo a calhar; podia ir a casa ainda da parte da manhã, buscar a agenda de que se esquecera. Percorreu os corredores do tribunal em direcção ao parque dos magistrados com um passo enérgico, elegante no seu saia-casaco de bom corte e cumprimentando com quem se cruzava com a clara e ousada noção do impressivo impacto que causava.

Ouviu o aspirador ainda no patamar e mal entrou na moradia, dirigiu-se ao escritório; a agenda lá estava, onde a deixara na véspera. Antes de voltar a sair, foi avisar a Adélia que tinha passado por lá e perguntar se precisava de alguma coisa. Seguiu o intenso e irritante uivo do aspirador até à porta do salão, abriu-a e assim se quedou, com a mão no puxador, boca aberta, num torpor, varada pela estupefacção. A empregada, de costas para ela, aspirava (naturalmente) o tapete diante da lareira, envergando o seu pijama de seda, o côr de salmão, o mesmo com que se deitara nessa noite, aquele de que gostava particularmente pelo único e maroto botão mesmo a meio e que nessa manhã deixara em desalinho sobre a cama.
Fechou a porta num impulso irreprimível e imponderado antes de a mulher ter dado por si e saiu pelas traseiras, tão desorientada como se tivesse levado bofetadas de todos os seus melhores amigos. Contornou o muro por fora e voltou ao carro, sentou-se e, atarantada, tentou reagir à indignação e ao asco. Passou-lhe pela cabeça ir tomar um banho, mas não se lembrou onde. Telefonou ao marido e pediu-lhe que fosse despedir a sujeita (...agora, ouviste! Já !...), adiando as explicações para o fim da tarde, incapaz de verbalizar o inacreditável desplante.

Chamou a si a sua tão reputada racionalidade, iniciou a construção de uma blindagem de pragmatismo e foi acalmando enquanto comia a salada de rúcula durante o almoço; ...e isto durante meses, anos...; o pijama, à noite, bem dobrado debaixo da almofada; as peles, os cabelos, os fluidos da...desavergonhada! O nojo ia e voltava em vagas imparáveis mas, felizmente, cada vez mais controladas. Pediu um café e determinou que ia acalmar-se; tinha uma sentença para pronunciar às duas e meia.

Regressou ao gabinete assumindo uma pose assertiva e confiante. A sua cabeça acabava de estruturar toda a bizarra e perturbante informação em lotes referenciáveis e dava por encerrado todo o processamento analítico do caso e das suas inescapáveis consequências. Faltavam dez minutos para o julgamento. Retirou a beca do cabide, colocou-a sobre as costas da cadeira, levantou a saia e com um gesto delicado e rotineiro, fez deslizar as cuecas ao longo das pernas bem feitas. Envergou então o traje formal, olhou-se ao espelho, deu um jeito no cabelo e gostou do que viu. Sentia-se sem quaisquer constrangimentos, plenamente renovada e absolutamente segura para presidir à audiência.


10 outubro, 2010

Manifesto Pela Timidez




Dissimula-se amíude atrás de impenetráveis muralhas de palavras; tão intransponíveis, que são frequentemente confundidas com silêncios.
Por vezes ainda, desenvolve intrincados enredos, labirínticos cenários e sequências de imagens, por onde o seu hospedeiro deambula, nunca sem deixar abertos alguns postigos para a realidade.
E se, por mais inverosímil que possa parecer, um tímido acumula igualmente uma centelha de loucura, então a psicologia tem razão, em como com o assumir do diagnóstico, reconhece efectivamente que este não se lhe aplica (o de tímido ou o de louco!...).
Afinal, o maior crédito que pode ser dado a um tímido, é o de o expor públicamente como desenvolto e descarado extrovertido.


Les timides
Ça s'tortille
Ça s'entortille
Ça sautille
Ça s'met en vrille
Ça s'recroqueville
Ça rêve d'être un lapin
...

Les timides
Suivent l'ombre
L'ombre sombre
De leur ombre
Seule la pénombre
Sait le nombre
De leurs pudeurs de Levantin
Ils se plissent
Ils pâlissent
Ils jaunissent
Ils rosissent
Ils rougissent
S'écrevissent
Une valise dans chaque main
...
Les Timides - Jacques Brel


Para a Henedina

06 outubro, 2010

Fútil Memorabilia Estival ( MMX )






O “Rabo de Asno”, a exaltação e o prazer de reencontrar a serenidade da absoluta simbiose com o Atlântico...

A Sétima Vaga com lagoa em emulsão de prata em fundo, apenas perturbada pelo reverberar da esteira do nadador solitário e pelo recorte sensual da bela sentada, cuja felicidade distraída comanda o discreto balançar dos pés na água...

As atmosferas benevolentes de Jasmine (KJ & CH) e dos Villagers, insinuando o reforço dos laços e estimulando os cálidos debates no decorrer das celebrações dos afectos...

Uma cassatta de fruta fresca como catalisador de uma suprema lascívia gulosa...



“Sob um céu da tonalidade suave de violeta que pinta o interior das conchas de ostra, soltou amarras e começou a subir o rio impelindo-se à lei da vara contra a corrente preguiçosa, levando o acordeão consigo para a viagem”

Crimes do Acordeão - E. Annie Proulx