15 outubro, 2010

O Fetiche






O adiamento de uns trâmites jurídicos por falta de comparência de um dos advogados tinha vindo mesmo a calhar; podia ir a casa ainda da parte da manhã, buscar a agenda de que se esquecera. Percorreu os corredores do tribunal em direcção ao parque dos magistrados com um passo enérgico, elegante no seu saia-casaco de bom corte e cumprimentando com quem se cruzava com a clara e ousada noção do impressivo impacto que causava.

Ouviu o aspirador ainda no patamar e mal entrou na moradia, dirigiu-se ao escritório; a agenda lá estava, onde a deixara na véspera. Antes de voltar a sair, foi avisar a Adélia que tinha passado por lá e perguntar se precisava de alguma coisa. Seguiu o intenso e irritante uivo do aspirador até à porta do salão, abriu-a e assim se quedou, com a mão no puxador, boca aberta, num torpor, varada pela estupefacção. A empregada, de costas para ela, aspirava (naturalmente) o tapete diante da lareira, envergando o seu pijama de seda, o côr de salmão, o mesmo com que se deitara nessa noite, aquele de que gostava particularmente pelo único e maroto botão mesmo a meio e que nessa manhã deixara em desalinho sobre a cama.
Fechou a porta num impulso irreprimível e imponderado antes de a mulher ter dado por si e saiu pelas traseiras, tão desorientada como se tivesse levado bofetadas de todos os seus melhores amigos. Contornou o muro por fora e voltou ao carro, sentou-se e, atarantada, tentou reagir à indignação e ao asco. Passou-lhe pela cabeça ir tomar um banho, mas não se lembrou onde. Telefonou ao marido e pediu-lhe que fosse despedir a sujeita (...agora, ouviste! Já !...), adiando as explicações para o fim da tarde, incapaz de verbalizar o inacreditável desplante.

Chamou a si a sua tão reputada racionalidade, iniciou a construção de uma blindagem de pragmatismo e foi acalmando enquanto comia a salada de rúcula durante o almoço; ...e isto durante meses, anos...; o pijama, à noite, bem dobrado debaixo da almofada; as peles, os cabelos, os fluidos da...desavergonhada! O nojo ia e voltava em vagas imparáveis mas, felizmente, cada vez mais controladas. Pediu um café e determinou que ia acalmar-se; tinha uma sentença para pronunciar às duas e meia.

Regressou ao gabinete assumindo uma pose assertiva e confiante. A sua cabeça acabava de estruturar toda a bizarra e perturbante informação em lotes referenciáveis e dava por encerrado todo o processamento analítico do caso e das suas inescapáveis consequências. Faltavam dez minutos para o julgamento. Retirou a beca do cabide, colocou-a sobre as costas da cadeira, levantou a saia e com um gesto delicado e rotineiro, fez deslizar as cuecas ao longo das pernas bem feitas. Envergou então o traje formal, olhou-se ao espelho, deu um jeito no cabelo e gostou do que viu. Sentia-se sem quaisquer constrangimentos, plenamente renovada e absolutamente segura para presidir à audiência.


2 Comments:

Blogger Unknown said...

caríssimo
Uma vez mais, os meus parabéns por este magnífico espaço. Todos os dias aqui venho na expectativa de encontrar mais uma lufada de inspiração que sopra a rodos neste Cabo dos Ventos e a cada visita a expectativa se confirma. Faço apenas um pequeníssimo reparo, de natureza meramente técnica: cá no nosso burgo, a toga é veste destinada ao advogado, o magistrado, esse, enverga sempre beca, mas para o caso tanto faz, que o texto vale pela sua qualidade literária e não pelos preciosismos jurídicos.
cumprimentos

15 outubro, 2010  
Blogger Windtalker said...

Reparo anotado e devidamente corrigido, com ligeiro ajuste estrutural! (nota-se que os detalhes da justiça não são o meu forte)... e uma vez mais obrigado pela visita e pelo comentário estimulante.
Cumprimentos

15 outubro, 2010  

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