06 janeiro, 2011

As Bençãos (Uma Espécie de Conto de Natal) - [ 3 ]





Não bastaram dez, nem sequer quinze anos.
Com o intento de dispersar os seus despojos por entre um anónimo e indiferenciado lote de ossadas, exumaram o seu corpo três vezes nesse período e por três vezes os fúnebres funcionários ao abrir a tampa do ataúde, não conseguiram reprimir o sobressalto que lhes era imposto por aquele olho exorbitante e inquiridor que a pálpebra fora incapaz de recobrir durante o infrutífero e piedoso acto, exercido após a terem encontrado morta, e que assim permanecera todos esses anos. O bizarro globo era apenas o farol de um corpo incorrupto que mantendo a disformidade de quando vivo, lhes parecia apresentar-se agora mais gracioso. Voltavam então a descê-la à terra com a esperança de, na próxima incursão, poderem pôr uma pedra sobre o assunto. Continuou pois, regularmente, a andar nas bocas do mundo.

No funeral do prior velho, o cemitério repleto de saudosos paroquianos, uma mulher caiu desamparada sobre a sepultura da desditosa, consequência de um desajeitado e acidental encontrão, tendo a sua cabeça embatido na lage com inusitada contundência, o que resultou na sua perda de sentidos. Na manhã seguinte, balbuciante e entaramelada, deu conta às vizinhas que a tinham velado de surpreendentes sintomas de melhoras no glaucoma de que padecia e reportou (coincidência!) um significativo alívio da sua molesta infecção urinária. O destino interveio então sob a forma de uma improvável mas definitiva e absoluta conjugação de ideias e associação de factos na mente de uma comadre, que se persignou ferverosamente. A exposição das suas conclusões às presentes teve um efeito epidémico e a miraculada, não sendo seu intuito prescindir do protagonismo, logo ali relatou a visão mística que a arrebatara no instante imediato ao impacto súbito do seu parietal esquerdo com a lápide.
Foi como fogo no mato! Prodígios das mais diversas estirpes começaram a reproduzir-se em todas as redondezas, a designação “Santa do Olho” surgiu inesperadamente não se sabe bem donde, oferendas e ramos de flores recobriam a sua até então modesta e resguardada campa, votaram-lhe promessas e aquele discreto recanto do cemitério foi-se tornando, com o tempo local de devoção e vigília.

Nos estertores do século vinte, foi erigida uma ermida para sua evocação com os donativos de inúmeros fiéis, tornando-se lugar de culto e de fé para muitos romeiros que desde remotas paragens aí se deslocavam, na esperança de maravilhosos e pequenos milagres pessoais, exclusivos às suas vidas atribuladas. Ao fundo, em altar destacado e num plano vertical sobreelevado, num esquife em acrílico rodeado por uma moldura de círios brancos, o seu bendito corpo impoluto expunha-se à veneração das gentes, que suportavam no mais íntimo das suas almas o trespassar daquele olhar tão acusatório quanto indulgente. E inundava-as um sentimento profundo e aliviador, não tanto como um perdão, mas sobretudo, inexplicávelmente redentor.

( Fim )

5 Comments:

Anonymous henedina said...

parietal esquerdo?
Bem é o fim.

06 janeiro, 2011  
Blogger Windtalker said...

Henedina: Fico apreensivo sem saber bem se o desabafo "Bem é o fim" se aplica a:
a)Alívio por este folhetim ter terminado
b)Poder haver alguma impossibilidade fisiológica de um parietal esquerdo embater numa pedra tumular - a menos que a designação "parietal esquerdo" não seja correcta (o que denunciaria uma minúcia de especialista!) - em que "Bem é o fim" significaria um irónico e zombeteiro "ao que isto chegou!"

06 janeiro, 2011  
Anonymous henedina said...

Não é nada o que "isto chegou" mas não precebi muito bem a serie, e não foi dos seus textos que gostei mais. Gosto das suas fotos.
O texto está inquinado de termos médicos: globo, glaucoma,infecção urinária,epidémico, parietal esquerdo, estirpes e estertores.
E obrigada por pôr a hipotese de eu ser arrogante e parva de vir aqui escrever: isto está incorrecto ao que isto chegou.
E, agora, não se aborreça por eu dizer que prefiro outro assunto mesmo não tendo percebido bem o objectivo desta história. Mas li.
Qto a minha profissão devo ser prof. dado que me pode acusar da presunção de ter analisado o texto.

07 janeiro, 2011  
Anonymous henedina said...

Henedina: Fico apreensivo
So do I, P. Ou pelo menos devia ficar?
E verdade, verdade a minha profissão começa por P. Acho que posso dizer que as minhas duas profissões começam por P. Mas há um P que claramente predomina e esse há apenas quem o designe por M.
E para o escritor, "bem é o fim" é: como a série terminou não vou dizer, mas digo e espero que compreenda que é porque me interesso. Ninguem bate com o parietal esquerdo batem com a cabeça e depois podem fracturar o parietal.
Se achar que extravasa caixa de comentarios fica na mesma a saber do parietal :)

09 janeiro, 2011  
Blogger Windtalker said...

Henedina, como assídua visita deste espaço, é um privilégio poder congratular-me com o seu interesse ; encaixo pleno de "fair play" todas as opiniões e mesmo as críticas mais severas, principalmente as de um leitor atento. Nada de apreensões, pois! Aliás posso ser rebuscado e arrevesado mas não espero ser consensual (estimula-me aliás não o ser!)... Poderia contrapor o seu argumento sobre a quente questão do "parietal" mas:
a) terá o escriba de explicar os meandros de uma estória?
b)uma caixa de comentários é efectivamente um espaço acanhado para tais desenvolvimentos.

PS: o facto de mencionar que foi dos textos que menos gostou, pressupõe que outros haverá dos quais gosta. Para mim, a sensação é de apoteose!

09 janeiro, 2011  

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