10 dezembro, 2007

Atmosferas (I)


A chuva batia, sedutora, na parede de vidro voltada ao jardim, murmurando doce mas insistentemente, convites aconchegantes. Lá fora, sob a imensa cúpula cinzenta, naquele anfíbio amplexo que as miríades de gotículas celestes prodigalizavam, as árvores, as plantas, as folhas, os ínfimos seres, saciavam-se deleitadamente absorvendo a essência primordial da vida, com a voracidade de quem experimenta singulares prazeres.
A sala era muito grande, de geometria irregular, e as paredes branco-frio formavam enormes pé-direito inclinados. A quem entrava pela maciça porta em madeira, deparava-se-lhe em frente, um fogo de sala hipnotizador, ladeado num ângulo obnóxio por um sofá antracite e uma distinta marqueza, de suave rosa-carne veludo (re)vestida. Do lado esquerdo, norte portanto, uma esmagadora tela de Bacon pendia, ultrajante, ocupando desmesuradamente o cintilante espaço deixado vazio por um pesado reposteiro sangue-de-boi, que descia em formas voluptuosas, do tecto ao chão.Nesse canto ainda, um equipamento de som e vídeo para regalo dos cinco sentidos. Mais longe, como que clandestinamente dispersos numa pilha informe, entrefolhavam-se maliciosamente Mrs. Dalloway, Lautréamont, Appolinaire, Justine, o Ricardo R, o Burroughs, a Lou-Andeas e Melle. Eberhard, num festim nu de formas e palavras. Um pouco excêntrica, a mesa e a sua própria posição no salão, acomodava uma coberta carmim e candelabros de velas da mesma côr. Etéreo, tal espectro difuso, fluindo em ondas de paixão húmida e quente, o "Spiegel im Spiegel" da Alina do Pärt, qual canto de sereia de insondáveis e aventurosos mares, predominava aos ouvidos do homem que perscrutava para além da janela, contra as libertárias gotas que do céu sombrio o desafiavam, batendo na panorâmica transparência.

6 Comments:

Blogger Aninhas said...

Dá vontade de estar aí. Escreves tão bem que consigo visualizar esse salão.

10 dezembro, 2007  
Blogger Windtalker said...

Obrigado, Aninhas...
Também vai muito da sensibilidade de quem lê!...

12 dezembro, 2007  
Anonymous Anónimo said...

cortinas vermelhas
chuva (lá fora)
e tempo sem fim para ler
[suspiro]

12 dezembro, 2007  
Anonymous Anónimo said...

dessa pilha informe, trouxe alguns para as minhas ordenadas prateleiras - reconheço-os :)

12 dezembro, 2007  
Blogger Windtalker said...

Ângela, se algo de caótico é aprazível à vista, são pilhas desordenadas de livros sublimes...

15 dezembro, 2007  
Anonymous Anónimo said...

pilhas onde apetece mergulhar, sim :)

16 dezembro, 2007  

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