17 fevereiro, 2007

Circularidades II _ Altrospecções

Tem sido uma verdadeira semana de loucos...Primeiro, a desmesurada quantidade de casos cada vez mais estranhos e raros que nos aparecem à frente cá no Instituto, fruto, quem sabe, da acelerada tendência (dizem que do nosso tempo) de as pessoas criarem os seus próprios e unívocos universos para melhor fugirem ao de todos nós (eu próprio tenho que admitir que quando não estou no Instituto, passo mais tempo a tentar ganhar jogos de xadrez ao computador do que em qualquer outra actividade ; é a unica maneira de focar a minha racionalidade, quando me sinto imerso nesta sociedade tão sem sentido). Já não me bastava isso, teve que sair-me na rifa do turno mensal aquela antipática; fria e seca como os ventos árticos, distante e inacessivel como o farol de Finisterra em noite de tormenta (dizem que saída de uma relação feia e frequentadora de negros antros)... Para compôr o ramalhete, andamos desde há uns dias a adaptar-nos à nova engenhoca cá do serviço, um sistema de sensorização avançada que permite, por meio de sondas e respectivos transdutores personalizados (óculos, auriculares e estimuladores sensoriais cutâneos), penetrar nas mentes alucinadas dos pobres diabos que aqui todos os dias nos chegam, nos mais inomináveis estados de demência...de loucos, digo-vos...
Peguei na ficha do desgraçado que se seguia e que estava já prévia e devidamente acondicionado para o exame: aspecto rude e seco, talvez pescador, ausência de reacções, auto-agressão, provável síndrome de abstinência (dizem que perdeu a amada... a quem poderia tal bizarro ser despertar paixão?)...provável fixação sexual, tresloucotaradice, copos, enfim...digo eu!!
Terminava a leitura quando "ela" entrou na sala, sentou-se na cadeira prevista (ao lado da minha), sem me fitar com aqueles olhos azuis, glaciares, profundos, neutros, em que apenas o desdém e o distanciamento dardejam, atirando-me com um "Bom Dia" áspero como pele de cobra, pela boca (comentam e concordo, que sensualíssima!) fora...
Sem mais atrasos, colocámos os auscultadores, os óculos e os transdutores...ela deu então início à sequência...

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Após o clique que sinalizou o final da sessão de altrospecção, passaram-se ainda dois minutos antes de me dar conta que a minha boca estava aberta de sublime surpresa, um suave aguilhão trespassava-me e à espessa carapaça, para me inocular um perverso veneno de emoção. Senti então, ainda trôpego de leveza, a sua mão ancorada na minha. E serenamente, voltei-me. Aqueles olhos azuis, agora trémulos e límpidos, brilhavam de perfeição feliz; os lábios (preciosos) desenhavam distintamente um abençoado sorriso de tranquilo prazer, de partilha.
Mantivemo-nos assim ainda algum tempo. Então, limpando-lhe com a mão uma salgada gota da face (remetendo-me para uma praia entrevista), convidei-a para um café...


2 Comments:

Blogger Maria do Rosário Sousa Fardilha said...

Também aguardo a chegada dos novos "scanners" nesta era que - dizem, e eu acredito - será revolucionária para a neuroimagiologia.

Seria tudo tão mais simples se pudéssemos ler mais facilmente as intenções e desejos recalcados - os nossos e d'altros!

Os olhos azuis, verdes, castanhos passariam todos de gélidos a cristalinos?_________ enfim, nem sempre. e também não está garantida mais magia.

Mas talvez fosse menor o número de pescadores sozinhos em mar alto.

21 fevereiro, 2007  
Blogger Windtalker said...

...acho que se apenas pudéssemos reconhecer o que verdadeiramente queremos, já descomplicaria o suficiente...
A entropia seria demasiada, com a leitura dos "outros"...

21 fevereiro, 2007  

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